domingo, 19 de abril de 2009

Resenha sobre o documentário Morrendo para contar a história, de Amy Eldon

Por Luiza Barros


Come you masters of war
You that build the big guns
You that build the death planes
You that build all the bombs
You that hide behind walls
You that hide behind desks
I just want you to know
I can see through your masks

You that never done nothin'
But build to destroy
You play with my world

Like it's your little toy
You put a gun in my hand
And you hide from my eyes
And you turn and run farther
When the fast bullets fly

Masters of War – Bob Dylan


Por que garoto, mal saído da adolescência, com as bochechas rosadas e as roupas largas, resolve passar os que poderiam – e deveriam – ser os melhores anos na da sua vida numa guerra civil em um dos muitos países da África, um daqueles eternamente esquecidos pelo resto do mundo?
Aos 22 anos Dan Eldon foi morto na Somália durante uma turba Somali. Ele cobria o conflito no país, como fotógrafo da agência internacional de notícias Reuters, junto com outros três jornalistas também mortos no mesmo dia: Hos Maina, Anthony Macharia e Hansi Krauss.
A pergunta do primeiro parágrafo é comumente a que as pessoas fazem – mesmo que em silêncio – quando ficam sabendo do triste destino de Dan. Seria difícil dizer, mas ele não foi o único, nem o primeiro, nem o último a fazer tal tipo de escolha.

É claro que existe o espírito de aventura, a necessidade de se arriscar, de fazer a própria vida ser memorável, talvez mais lemItálicobrada por alguns do que a dos que vivem no continente dos eternamente esquecidos. Mas Dan, ele poderia ter pulado de bungee jump se quisesse aventura, poderia ter virado um acionista da Wall Street se quisesse riscos, poderia ter participado do Big Brother se quisesse exposição. Mesmo assim, não, mesmo tendo todas as opções que um rapaz com algum dinheiro e alguma beleza poderia ter, ele resolveu ir pra guerra, não para lutar, mas para tirar fotos. Entrada vip para conhecer o inferno.

A partir desse questionamento, a irmã de Dan, Amy Eldon, inicia sua jornada no documentário Morrendo para contar a história. Em seu primeiro filme, Amy reconta a história do irmão com um sentimentalismo que, apesar de sincero, não deixa de ser encenado para as câmeras. Isso pode incomodar alguns, mas mesmo assim não tira o mérito do trabalho. O mais interessante não é, na verdade, a “jornada” de Amy, mas sim os depoimentos dos fotógrafos e jornalistas de guerra que ela encontra em seu caminho. Nomes grandes, como Christiane Amanpour, Martin Bell, Don McCullin e Peter Mugabane, entre outros.

Cada um, com suas trajetórias de vida distintas, tem uma história diferente para contar. E com uma visão diferente do que significa estar lá, no inferno, como observador, testemunhando, fotografando, relatando, enfim, trabalhando, nada mais do que um trabalho, um meio de vida. É a partir daí que cada um se revela; uns vêem isso como prestação de um serviço à sociedade, como algo grandioso, transformador, capaz de mudar o mundo. Estão convictos, seja porque realmente acreditam ou porque precisam acreditar, como um escudo protetor de todos os traumas que a guerra pode trazer. Outros – e aí o maior exemplo é o depoimento comovente de Don McCullin – não se sentem tão inabaláveis assim. As convicções foram todas perdidas, não há nada de heróico, de transformador naquela função de capturar suas impressões da guerra; chega a ser até, de certa maneira, vergonhoso.

Fica mais fácil de entender o pessimismo de McCullin quando o vemos na tela. Um homem arrasado, que olha para baixo ao andar e fala com a voz desconsolada. McCullin conta porque largou o fotojornalismo de guerra. Após 35 anos cobrindo conflitos, sempre seguiu a receita de Robert Capa (considerado o maior dos fotógrafos de guerra) de chegar mais perto da cena até que, um dia, no Beirute, não pôde mais. Uma bomba, mandada pelos israelitas, explodiu em um condomínio. No meio da confusão, uma mulher surgiu, desesperada, histérica (como mais poderia estar?). Don não hesitou e bateu a foto. Seu trabalho. A mulher viu e veio em sua direção, com as lágrimas rolando, e começou a socá-lo. Don agüentou – com apenas um movimento já havia agredido muito mais; conseguira elevar o sofrimento que já estava no auge. Voltou para o hotel, mal agüentando a culpa e vergonha que sentia, quando recebeu o aviso: aquela mulher, aquela que sofreu tanto, tinha acabado de ser morta. Morta.

O documentário termina contando os dias finais de Dan Eldon. Em seus cadernos, Dan misturava relatos diários, citações, desenhos e recortes de suas próprias fotos. Era uma forma de tentar expressar todos os sentimentos misturados que sentia em relação à sua vida e ao que via. E à morte. Em certo ponto, fica claro que as abstrações de Dan não estavam apenas no papel, mas na confusão que se tornara sua mente. Ele planejava um retorno daquela viagem ao inferno quando foi morto. Já tinha tido demais.

12 de Julho de 1993, Mogadishu, capital da Somália. Uma operação do exército americano bombardeou o prédio central da ajuda humanitária. Os americanos, em um erro grotesco de inteligência, acreditavam que se encontrava ali o clã do “senhor da guerra” Mohamed Farrah Aidid. Cinqüenta pessoas foram mortas por isso. A multidão rebelou-se e, no meio da tragédia, os jornalistas da Reuters que vinham em um jipe foram atacados e levados até a morte, pisoteados pela multidão enfurecida.

A história de Dan Eldon acabou ali, quando passou a ser mais uma das tantas vítimas de uma das tantas guerras que já tomaram lugar. Depois disso, muito se foi feito e dito com o nome dele. A família de Dan, talvez numa tentativa de aliviar a sua dor elevando-o ao heroísmo, ou pelo menos, ao não-esquecimento, divulgou os seus diárItálicoios de todas as formas possíveis. Fundaram uma organização chamada Creative Visions Foundations em sua memória. Amy produziu o seu documentário de que tanto falamos. Uma adaptação para o cinema de sua vida está sendo preparada, até agora com o título de The journey is the destination, uma das frases cunhadas por Dan em seus diários. O astro adolescente Daniel Radcliffe foi escolhido pessoalmente pela mãe do fotógrafo para vivê-lo nas telas.

Apesar de todo esse interesse midiático, de toda essa glorificação, nada é capaz de tirar o gosto amargo sentido nas palavras de Don McCullin. Dan muito provavelmente não desejava ser um herói póstumo, e sim ter uma vida intensa. Ver a realidade da guerra, com todos os seus ossos expostos, é, de fato, uma forma de levar a vida ao extremo. Não faz sentido medir aqui se vale a pena ou não, se todos aqueles retratos e relatos são capazes de mudar algo no mundo ou nas pessoas. No entanto parece, depois de ver toda aquela destruição que vem do alto, dos senhores, como se viesse de lugar nenhum, mas que atinge a todos, a troco de alguma coisa para os senhores, e absolutamente nada para nós, que não existe algo tão impiedoso, tão injustificável, mas mesmo assim, tão recorrente quanto o horror, o horror da guerra.

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